Cosméticos veganos e naturais, atualização de normativas e cosmetovigilância são apenas dos alguns assuntos que têm pautado o cenário da regulamentação de cosméticos no Brasil.
Para trazer um panorama atual do assunto e de como a indústria tem atuado no atendimento às regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a in-cosmétics Latin America conversou com a Dra. Vanessa Mascarenhas, advogada especialista em legislação sanitária e fundadora da Titanium Consultoria com mais de 20 anos de experiência no setor regulado. Confira a entrevista abaixo:
in-cosmetics Latin America – No ano passado, a Anvisa publicou novas regras para a Cosmetovigilância. Quais mudanças elas trazem para a indústria do setor e, pelo que a empresa tem acompanhado, quais têm sido os principais desafios de players no monitoramento de produtos?
Dra. Vanessa Mascarenhas – A publicação da norma RDC nº 894/2024 reforça a responsabilidade das empresas em monitorar de forma contínua a segurança de seus produtos e cria um arcabouço detalhado sobre os requisitos mínimos obrigatórios de um sistema de cosmetovigilância. Entre as principais mudanças, podemos destacar a exigência de um formulário padronizado para a coleta de relatos de consumidores e a integração deste a um banco de dados que deve ser mantido por cinco anos; a designação de um profissional qualificado e residente no Brasil para mediar a comunicação com a Anvisa; a criação do Arquivo Mestre da Cosmetovigilância, documento que descreve processos, responsabilidades, treinamentos e estratégias de comunicação em momentos de crise, assim como a realização de auditorias periódicas e a manutenção de registros por cinco anos e a possibilidade de uso de tecnologias de inteligência artificial para monitoramento.
Essa mudança regulatória traz diversos impactos para a indústria de cosméticos, desde o fortalecimento da proteção do consumidor, a equiparação do Brasil ao Mercosul e às práticas internacionais, fator que aumenta a confiança do mercado global nos produtos brasileiros, até a imposição de desafios operacionais e financeiros, especialmente para pequenas e médias empresas. A adequação exige não apenas um investimento em tecnologia e processos, mas uma mudança cultural na qual a cosmetovigilância deixa de ser vista como cumprimento burocrático e passa a ser tratada como uma ferramenta estratégica de gestão de risco e qualidade. A norma entrou em vigor desde agosto de 2025 e, por isso, o setor está passando por um momento de transição, exigindo planejamento, capacitação e visão de longo prazo para quem deseja transformar essa nova regulação em um diferencial competitivo dentro do mercado.
in-cosmetics Latin America – Em dezembro, a Anvisa abriu uma consulta dirigida sobre sandbox regulatório para cosméticos personalizados. Qual é o atual status da regulação desses produtos? O que deve mudar no caso da normatização?
Dra. Vanessa Mascarenhas – A consulta esteve aberta de 11/12/2024 a 31/01/2025 e serviu para colher contribuições sobre os critérios e limites do piloto. Atualmente o processo está na etapa pós-consulta: a agência publicou materiais explicativos, realizou webinar e segue na fase de consolidação da operacionalização do piloto.
Se a normatização avançar, ela precisa resolver de forma prática questões centrais como a definição de titularidade e responsabilidades; regras sobre autorização e escopo de flexibilização; requisitos mínimos de Boas Práticas de Fabricação aplicáveis ao PDV, com controles de higiene e validação de procedimentos; rotulagem, prazo de validade e rastreabilidade, quando cada unidade é única; critérios técnicos para avaliação de segurança e estabilidade de combinações; integração obrigatória com cosmetovigilância e rastreabilidade de relatos; e normas claras sobre proteção de dados e governança de algoritmos e IA usados para recomendar fórmulas.
As empresas que quiserem competir nesse novo mercado devem antecipar a conformidade: mapear cadeia de responsabilidades e contratos, implementar um sistema de identificação e rastreabilidade das formulações, documentar controles de qualidade no local de produção, preparar governança de dados e validação de modelos caso usem algoritmos. Participar do sandbox, quando houver seleção, é uma oportunidade de testar inovação, influenciar a regra final e demonstrar capacidade operacional frente às exigências que a Anvisa vem consolidando com a RDC 894/2024.
in-cosmetics Latin America – Quais têm sido os maiores desafios das empresas na regulamentação de seus produtos?
Dra. Vanessa Mascarenhas – Regulamentar cosméticos no Brasil exige visão estratégica, domínio técnico e capacidade de adaptação rápida. Atualmente, os maiores desafios enfrentados pelas empresas estão diretamente ligados à complexidade crescente das normas e à necessidade de digitalização e agilidade, sem comprometer a conformidade. Um dos pontos mais críticos tem sido a migração para os novos sistemas eletrônicos da Anvisa. Esse momento de transição exige revisão de dossiês técnicos, adequação da documentação ao novo formato e capacitação das equipes para operar em um ambiente digital mais rigoroso. Também pesa o rigor técnico e documental trazido por essas normas recentes, elevando o padrão de exigência. Outro desafio constante é a reformulação de produtos já comercializados, algo que exige a constante atualização de listas de ingredientes permitidos e restritos. Por fim, a integração entre áreas internas tornou-se indispensável. Regulatório, P&D, Qualidade, Jurídico, SAC e Marketing precisam atuar de forma coordenada para garantir conformidade em todo o ciclo de vida do produto.
in-cosmetics Latin America – Nos últimos anos, temos visto o surgimento das indie brands, marcas independentes e autorais. Esse movimento tem impulsionado maior demanda por regulamentações?
Dra. Vanessa Mascarenhas – As indie brands trazem propostas inovadoras, como cosméticos naturais, veganos, personalizados e com foco em diversidade, desafiando diretamente os modelos tradicionais de produção. Esse movimento tem impulsionado uma demanda crescente por regulamentações mais flexíveis, inclusivas e adaptadas à realidade dos pequenos produtores, sem comprometer a segurança do consumidor. Um exemplo é a Lei nº 15.154/2025, que dispensa o registro prévio na Anvisa para cosméticos artesanais, desde que sigam critérios técnicos específicos.
Essas mudanças representam não apenas avanços na indústria, seja, por exemplo, reduzindo as barreiras de entrada para as indie brands e o incentivo a adoção de processos digitais e monitoramento pós-mercado, mas também permite expansões no que é um cosmético, por meio do reconhecimento de saberes ancestrais e práticas tradicionais, ou permitindo uma maior agilidade nas inovações, mas sem abrir mão da segurança sanitária e da rastreabilidade.
Em síntese, o crescimento das indie brands está reconfigurando o ecossistema regulatório, exigindo normas que acompanhem a velocidade da inovação, a diversidade de modelos de negócio e as tendências internacionais. Trata-se de um movimento que democratiza o acesso ao mercado, amplia o olhar regulatório para estética, identidade e ciência de forma plural e contemporânea, reforçando o compromisso com a segurança e com a confiança do consumidor.
in-cosmetics Latin America – Considerando o cenário latino-americano, como o processo de regulamentação no Brasil está alinhado aos dos demais países do continente?
Dra. Vanessa Mascarenhas – Comparado aos demais países da América Latina, o Brasil apresenta um modelo regulatório mais estruturado, técnico e exigente, especialmente no que diz respeito à segurança pós-mercado, rastreabilidade de ingredientes e validação de sistemas. Esse cenário se deve, também, ao papel da Anvisa como uma das agências mais consolidadas da região e com forte atuação em fóruns internacionais.
Em contrapartida, essa robustez apresenta desafios de alinhamento. Muitos países latino-americanos adotam modelos mais flexíveis ou simplificados, o que pode gerar assimetria regulatória e dificultar a exportação de produtos brasileiros. Com a crescente integração comercial e o avanço de temas como cosméticos personalizados, produtos artesanais e sustentabilidade, observa-se uma tendência clara de harmonização regional. O Brasil tem participado ativamente dessas discussões, incluindo a proposição de sandbox regulatórios e revisões de listas de ingredientes, medidas que podem servir de referência para outros países.
in-cosmetics Latin America – Na sua opinião, como a regulação brasileira está lidando com a evolução do mercado? Como tem sido essa relação modernização e legislação?
Dra. Vanessa Mascarenhas – A regulação brasileira tem se esforçado para acompanhar a evolução do mercado cosmético, diante da aceleração tecnológica, da personalização de produtos e da crescente demanda por sustentabilidade e transparência. O esforço da modernização se manifesta em três frentes principais: na digitalização de processos por meio da migração para um sistema mais novo e a integração com o Portal Único do Comércio Exterior, movimento que permite maior agilidade, rastreabilidade e transparência nas medidas de regularização, na abertura à inovação por meio de ações, como a abertura do sandbox regulatório para os cosméticos personalizados e a possibilidade que empresas testem soluções inovadoras sob a supervisão da Anvisa. Por fim, a adaptação a novos modelos de negócio como a isenção de registro prévio de cosméticos artesanais, medida que beneficia indie brands e microempreendedores. Essa flexibilização busca equilibrar agilidade e inclusão com segurança sanitária.
in-cosmetics Latin America – Há temas em discussão que devem proporcionar mudanças nos próximos anos? Quais?
Dra. Vanessa Mascarenhas – Nos próximos anos, o setor cosmético brasileiro deve passar por mudanças em diversos temas regulatórios. A Anvisa já listou mais de 100 pautas em discussão, incluindo tópicos novos e a consolidação de propostas anteriores por meio da Agenda Regulatória 2026–2027. Entre os destaques, podemos citar a definição técnica de cosméticos “orgânicos” e “naturais”, garantindo critérios objetivos para rotulagem e certificação; a atualização periódica das listas de ingredientes permitidos e proibidos, que pode exigir reformulações; a consolidação do sandbox regulatório para produtos personalizados, fortalecendo rastreabilidade, segurança e rotulagem; normas de inclusão e acessibilidade, como rotulagem em braile e QR codes; a definição da ação estética de certos produtos, evitando sobreposição com medicamentos; e a discussão sobre sustentabilidade e inventário químico, visando maior transparência e segurança ambiental.
in-cosmetics Latin America – Quais cuidados jurídicos são necessários na comunicação de claims de eficácia e segurança diferenciados?
Dra. Vanessa Mascarenhas – A comunicação de claims de eficácia e segurança diferenciados em cosméticos exige cuidados jurídicos, envolvendo responsabilidade sanitária, publicitária e civil. Todo claim deve ser comprovado por estudos clínicos, testes laboratoriais ou literatura científica reconhecida, e a empresa precisa manter um dossiê técnico atualizado, disponível para inspeção pela Anvisa e defesa em caso de questionamentos. É fundamental que a comunicação esteja adequada à categoria regulatória: alegações terapêuticas, preventivas ou curativas não são permitidas para cosméticos, e qualquer exagero pode ser enquadrado como propaganda enganosa ou gerar ações de concorrência desleal. Claims como “vegano”, “natural” ou “cruelty-free” exigem transparência e rastreabilidade, certificações ou critérios objetivos, especialmente diante da ausência de regulamentação específica para esses termos. O monitoramento pós-mercado também é essencial, empresas devem manter sistemas de cosmetovigilância, revisando dados clínicos, auditorias periódicas e notificando a Anvisa quando necessário.
in-cosmetics Latin America – Quais são os erros mais frequentes cometidos pelas marcas ao registrar um cosmético junto à Anvisa? Como a área jurídica pode atuar de forma estratégica com as empresas do setor?
Dra. Vanessa Mascarenhas – Os erros mais frequentes cometidos pelas marcas ao registrar cosméticos junto à Anvisa estão relacionados à documentação técnica incompleta ou inconsistente, rotulagem fora do padrão, classificação de risco incorreta, falta de testes de segurança e desconhecimento das atualizações regulatórias. Essas irregularidades podem gerar indeferimentos, atrasos, sanções e até recolhimento de produtos. A área jurídica pode atuar não apenas na defesa em processos administrativos, mas, também, de forma estratégica transformando a conformidade regulatória em vantagem competitiva, permitindo que as marcas lancem produtos com segurança, agilidade e confiança no mercado. Alguns exemplos de atuação estratégica são: o mapeamento regulatório preventivo, a revisão de claims publicitários, a gestão de riscos regulatórios, o apoio à cosmetovigilância e a defesa técnica em processos. Em síntese, o papel do jurídico especializado é transformar a regulação de entrave em diferencial competitivo — e é isso que fazemos.
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